quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

O ESTUPRO DA CONSTITUIÇÃO II

Ambiguidade é um substantivo feminino que significa, em linguística,   diversas unidades, tais como, morfemas, palavras, locuções, e frases, admitindo sentidos diversos. Por admitir mais de uma leitura, então responde pela sua real aplicação, o contexto em que aparece, ou mesmo o juízo que o leitor fizer da mesma. Assim, o título deste artigo poderá se enquadrar em caso de ambiguidade, visto que permite ser lido que a Constituição foi estuprada ou que a Constituição pratica o estupro. Como não há intencionalidade, neste caso, de valer-se da norma culta para deixar clara uma única possibilidade de leitura, resta, portanto, a leitura que cada um conseguir fazer. Abstraindo-se o que se deve abstrair é mister que se verifiquem certos textos, em seus contextos, sem pretexto a fim de que se faça a leitura cabível. 
Ao analisar a Constituição da República Federativa do Brasil, notadamente a que foi produzida pela Assembléia Nacional Constituinte de 1988, veem-se diversos aspectos emblemáticos na sua redação. A começar pelo preâmbulo onde se pode ver algumas colocações, no mínimo, contraditórias para não dizer que são sem o menor propósito. Sabe-se, ainda, que o preâmbulo da Constituição não se constitui em norma central, e, portanto, não tem força normativa. Todavia, o tal preâmbulo é colocado em epígrafe, justamente porque é acatado como conteúdo sintético dos valores que norteiam a referida Constituição. 
Lê-se no preâmbulo, as seguintes afirmações: "Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL."
O verbo "assegurar" utilizado no contexto preambulatório é, no mínimo, desajuizado, posto que exige, não apenas, a afirmação, mas também os meios e os resultados das premissas a que rege. O Estado não tem assegurado os direitos sociais e individuais em sua significação democrática, pois nem todos têm acesso aos tais direitos. A liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça não são distribuídos democraticamente. Por democrático entende-se que o Estado responde em perfeita isonomia os mesmos direitos dos cidadãos, independentemente das suas condições socioeconômicas. 
Igualmente, o texto do preâmbulo afirma que o Brasil é uma "sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos." Nem por força de mágica, ou de fé, se pode afirmar, ou mesmo, assegurar esta afirmação. Fraterno é um termo que nos remete à ideia de irmandade, onde todos se amam e se respeitam igualmente, apesar das diferenças. O pluralismo é um fato incontestável, pois o próprio processo histórico se encarregou de produzi-lo. Acrescenta-se que há diversas categorias de pluralidade: étnica, religiosa, econômica, cultural, política, filosófica. Os preconceitos, a saber, quando se tem um conceito antes de ter conhecimento de causa, são os mais conhecidos da sociedade brasileira. Todos os dias são denunciadas atitudes preconceituosas de todos os níveis na mídia. Isto sem contar aquelas pessoas que são vítimas silenciosas que não denunciam por medo, ou por não ter informação, ou ainda por achar que não está sendo atingida em sua integridade.
Finalmente, o dito preâmbulo, invoca a proteção de Deus para a promulgação da Constituição. Ora, como pode um conjunto de representantes inserir tal afirmação em uma Carta Magna, ou Lei Maior, quando a mesma se destina à regulação de um Estado laico? Além do mais é muito temerário invocar o nome de Deus para proteger representantes de diversos matizes, incluindo-se os ateus professos e não-professos. 
Não se pode forcejar Deus a proteger uma Constituição destinada a uma sociedade permeada de injustiças, desmandos, desgovernos, corrupção, desigualdades e arbitrária com a coisa pública, como é o caso do Brasil. Deve-se, no mínimo, não envolver Deus nesta trama sórdida, para não correr o risco d'Ele reivindicar a sua justiça. Muito pelo contrário, deveriam ter imenso temor de invocar Deus na proteção de um país onde se faz barganha com o voto que deveria ser livre, posto que arroga-se ser um Estado Democrático de Direito.

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